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sábado, julho 24, 2010

Trecho do fragmento 23 do "Livro do desassossego", composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente.

"Ninfas e Sátiro", 1873 - William Adolphe Bouguereau

"Memento d'Ângelo" (Primeiro Fragmento)

Eu sou... um anjo. Eu sou um anjo, merda. É, um anjo, porra. Um anjo. É foda. Mas é isso mesmo. Não queria, porque é foda. Anjo. Não queria nem dizer um troço desses. Porque (um anjo!), puta que pariu (ou que o pariu, não sei bem – tá foda a minha cabeça). Porra, um anjo, é foda (quem é que vai acreditar nessa porra? Ninguém acredita mais em porra nenhuma, tá tudo ruindo nessa bodega de mundo, como é que vão acreditar em anjo, em mim, em um anjo, e ainda por cima se dizendo anjo?)! Eu não devia dizer uma coisa dessas, que anjo é foda, porque (eu sei, porra!), porque, de qualquer jeito, eu sou um anjo, anjo de merda, mas anjo. Mas, é isso aí, foda-se. É, é isso aí. Foda-se. (Aliás, fodam-se. É isso mesmo: FODAM-SE! Dane-se tudo e todo mundo. Já tô fodido mesmo. Então vão todos pra porra, pra puta que os pariu a todos, pro diabo que os carregue. Isso, vão todos, sem exceção, pro caralho – caralho!... cadê o meu caralho, porque é que não tenho caralho, porra, e nem buceta, merda? – porque eu, não se preocupem, se não fui ainda, daqui a pouco – já, já –, tô indo junto também. Sendo assim, não se acanhem, vão sem pressa, vão sem mim, mas vão – e não é que tô parecendo o Álvaro de Campos (como é que é mesmo?): “Vão para o diabo sem mim/ Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!/ Para que havermos de ir juntos?”). Mas como ia dizendo mesmo, eu sou um anjo. Vocês riem, tudo bem. É foda de acreditar (eu sei, porra! – já disse que sei!), porque às vezes nem eu acredito direito. É, às vezes, até eu duvido (como agora, depois de encher a cara de vodka, bêbado que nem um gambá – mas gambá bebe?). E olha que já faz um bocado de tempo que eu sou (eu sou: sempre quis dizer isso, e assim, com pompa, porque – vocês viram, foi a minha primeira frase, percebem? – porque essa é uma frase que Ele também usou, é, Ele, porra, J.C., o que chamam de Filho, aliás, Ele é foda – se bem que o Pai já tinha dito o mesmo pra Moisés – mas, de um jeito ou de outro, tanto na primeira quanto na segunda vez em que a frase foi dita, ninguém entendeu lhufas, ou quase lhufas, mas Ele, o Filho, usou, e ao menos viram que era uma citação, uma referência ao Pai dEle – ou que Ele acreditava que era dEle, mais dEle que de qualquer outro (o filho da mãe – ou do pai, sei lá) – ou, pelo menos, tudo isso é o que diabos os caras escreveram, primeiro, os chamados escribas, depois, os evangelistas). Aliás, um anjo, que eu me lembre, é o que sempre fui, mesmo de porre, mesmo duvidando, mesmo não querendo, mesmo agonizando, mesmo expulso, mesmo exorcizado, mesmo decadente, mesmo caído. Mesmo na merda, porra, mesmo no vômito, caralho (cadê a porra da garrafa de vodka, merda – puta que me pariu, tá foda, não vai dá pra continuar assim, puta que o pariu, depois eu continuo essa porra – e se eu chamar isso de diário íntimo? Não é isso o que tiveram a merda dos solitários desassossegados, e dos poetas, e dos personagens fodidos de ficção, e dos ficcionistas ou memorialistas malditos – desconhecidos em vida, mas de obras póstumas tardiamente célebres –, e da merda de todos os inéditos nesse mundo cão, inéditos nesse cu de mundo? Pois é, então é isso, que seja isso então: que vá pra puta que o pariu, diário íntimo do caralho! – onde é que eu botei a porra da minha navalha?)!

terça-feira, julho 13, 2010

Trecho do fragmento 14 do "Livro do desassossego", composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de qualquer maneira, e assim é toda a vida.